domingo, 17 de outubro de 2010

O Sonho da Aldeia Ding

image "O Sonho da Aldeia Ding", do escritor Yan Lianke, é uma ficção que carrega o peso de uma verdade triste. O romance, fundamentado por três anos de pesquisa do autor, conta a história de um vilarejo pobre da China onde o sangue de seus cidadãos é comercializado como qualquer outra mercadoria.

A atividade é exercida sem seguir normas de higiene e causa discórdia entre os aldeões.

Por meio da narrativa, o autor traz à tona os conflitos éticos trazidos pela pobreza extrema, assim como pelo desejo de enriquecimento, e mostra como a ganância termina por drenar e contaminar literalmente a vida da China.

Yan Lianke é considerado um dos principais escritores asiáticos vivo. É também um forte opositor da ditadura que reina em seu país. Foi expulso de lá por causa do livro "A Serviço do Povo", que faz sátíra com as idiossincrasias da população chinesa.

 

Sinopse - Um dos mais importantes escritores chineses contemporâneos - e um dos mais ferrenhos críticos da censura em seu país -, Yan Lianke recorre à sátira para criar tramas inspiradas nas particularidades de seus compatriotas. Após o sucesso de "A serviço do povo", banido na China por achincalhar o regime de Mao Tsé-Tung, ele retorna com outro tema polêmico: a comercialização de sangue humano.

Com base em três anos de pesquisa sobre o tráfico de sangue em sua província natal, Henan, "O Sonho da Aldeia Ding" é uma elegante tour de force literária. Um livro que confirma o talento de Lianke e, ao mesmo tempo, se coloca como uma dura e concisa observação do subdesenvolvimento no interior da China. A partir de uma pequena vila, onde o sangue é comprado e vendido livremente, e com terríveis conseqüências, o autor cria um romance que ilustra como a busca por riquezas drena os recursos naturais e contamina a vida da população.

A partir do pequeno Qiang, um inocente menino morto aos 8 anos, a história da vila da Aids é contata despretensiosamente. Na província de Henan, início dos anos 1990, habitantes de vilarejos pobres se veem seduzidos pela perspectiva de deixar a pobreza para trás. Tudo a um custo aparentemente baixo: a venda do próprio sangue. Logo doadores e coletores de plasma iniciam um ciclo desenfreado, sem se preocupar com o uso de agulhas esterilizadas.

Desde a discórdia entre os moradores até o estabelecimento de uma ordem intrínseca ao vilarejo - e alienada ao governo - o menino, assassinado em decorrência do enriquecimento do pai com o esquema de coleta de sangue, expõe as falhas de caráter e as virtudes dos aldeões. Somos levados a questionar o que é certo e o que é errado dentro do caos provocado pelo próprio governo. A ética se inverte, e segundo uma moral própria os grupos de sobreviventes farão o possível para se proteger e garantir uma morte digna.

Detalhes da Edição

Título: O Sonho da Aldeia Ding
Autor: Yan Lianke
Tradução: André Telles
Editora: Record
Edição: 1
Ano: 2010
Idioma: Português
Especificações: Brochura | 210 x 140 | 304 páginas

 

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Debaixo dos raios do sol poente, a planície do Henan estava vermelha, vermelha como sangue. Era fim de outono. Fazia frio. As ruas da Aldeia dos Ding estavam desertas. Os cães estavam de volta ao seu canto. As galinhas, empoleiradas. As vacas, há muito tempo deitadas no calor dos estábulos.

Nenhum ruído perturbava o silêncio da Aldeia dos Ding. A vida era igual à morte. Silêncio, fim de outono, crepúsculo.

A aldeia e seus moradores haviam definhado, e, como o capim e as árvores da planície, a vida secara: não passava de um cadáver enterrado em seu túmulo.

O vermelho do sangue dera lugar à escuridão da noite. Enfurnados em casa, os aldeões não saíam mais.

Meu avô, Ding Shuiyang, estava de volta da cidade. O ônibus que ligava Weixian, capital do distrito, a Dongjing, capital da província, deixara-o no acostamento da estrada principal como uma folha seca que o outono separa da árvore. O caminho que levava à Aldeia dos Ding fora pavimentado dez anos antes, quando todos os aldeões vendiam seu sangue. Por um instante, meu avô permaneceu imóvel no acostamento da estrada contemplando a aldeia que se estendia à sua frente. O vento trouxe-o de volta à realidade. Depois que embarcara no ônibus para ir à cidade escutar as intermináveis e melífluas exposições dos representantes do governo local, a confusão reinava em seu espírito. Agora tudo parecia claro como o sol nascendo num céu sem nuvens. Assim como é óbvio que as nuvens trazem chuva e o fim do outono traz frio, era óbvio que os aldeões que haviam vendido seu sangue dez anos antes iriam contrair "a febre" e deixar este mundo como as folhas mortas que o vento fazia cair das árvores no outono.

A doença escondia-se no sangue como meu avô imergia em seu sonho. A doença amava o sangue como meu avô amava o sonho.

Meu avô sonhava todas as noites. Fazia três noites que tinha um sonho recorrente. Ele estava em Weixian ou Dongjing. O sangue percorria uma rede de canalizações subterrâneas que se ramificava sob a cidade como uma gigantesca teia de aranha.

Nos locais em que os dutos estavam mal encaixados, o sangue esguichava para cima e caía numa chuva vermelha cujo cheiro irritava o nariz, e sobre toda a planície ele via o sangue brilhar nos poços e nos rios.

Nas cidades e aldeias, os médicos lamentavam sua impotência em refrear os progressos da doença, mas, diariamente, um médico, instalado numa rua da Aldeia dos Ding, esfregava as mãos de alegria. Na aldeia silenciosa, enquanto as pessoas se enterravam em suas casas, esse médico quarentão, sentado embaixo de sua velha sófora, a arca de remédios jazida a seus
pés, ria desbragadamente. Sua risada sonora fazia as árvores estremecerem e as folhas caírem, assim como o vento do outono que não esmorecia.

Quando saía do sonho, as autoridades convocaram meu avô para uma reunião. Como a Aldeia dos Ding havia perdido seu chefe, ele havia sido nomeado para substituí-lo.

De volta da reunião, diversas evidências ficaram claras para ele.

Em primeiro lugar, a doença que chamavam de "febre" tinha um nome: Aids.

Em segundo lugar, aqueles que haviam vendido seu sangue aquele ano haviam sido acometidos pela febre duas semanas depois e deviam forçosamente estar com Aids.

Em terceiro, aqueles que estavam com Aids apresentavam agora os mesmos sintomas de oito ou dez anos antes: uma febre comparável à da gripe, que desaparecia assim que eles ingeriam um medicamento antipirético, mas, três ou cinco meses mais tarde, eles já não tinham mais forças. Manchas e pústulas apareciam em seus corpos. Micoses carcomiam suas línguas e eles começavam a definhar. No fim de três meses, oito meses, muito raramente um ano, morriam. Carregados pelo vento como folhas secas. A luz se apagava e eles não eram mais deste mundo.

Quarta evidência: de dois anos para cá morria uma pessoa por mês na Aldeia dos Ding. Quase todas as famílias haviam perdido alguém. Mais de quarenta pessoas estavam mortas. Os sepulcros erguiam-se como feixes de trigo por toda parte nos campos. Alguns doentes com hepatite ou tísica, mas outros também cujo fígado e pulmões estavam perfeitamente saudáveis, não conseguiam engolir mais nada. Reduzidos ao estado de esqueletos, morriam seis meses mais tarde, depois de haverem cuspido uma bacia cheia de sangue. Carregados pelo vento como folhas secas. A luz se apagava e eles não eram mais deste mundo. Estivessem doentes do estômago, do fígado ou dos pulmões, era para todos a mesma "febre". A Aids.

Quinta evidência: aquela "febre", que no início só afetava os estrangeiros, as pessoas da cidade e os depravados, espalhara- se por toda a China, inclusive pelas aldeias, golpeando agora pessoas de conduta absolutamente inatacável. Como uma revoada de grilos, a doença abatia-se sobre as aldeias.

Sexta evidência: os que estavam doentes achavam-se irremediavelmente condenados. Era a nova doença mortal que golpeava o gênero humano, e o dinheiro nada podia contra ela.

Sétima evidência: aquilo era apenas o começo. A explosão iria produzir-se dali a um ano e atingiria seu paroxismo no ano seguinte. Por ora, dava-se a um homem que morria a mesma atenção que a um cão. Logo sua morte seria tão ignorada quanto a de um pardal, uma traça ou uma formiga.

Em oitavo lugar: eu estava enterrado atrás da escola onde meu avô morava. Quando eu morri, tinha acabado de completar 12 anos. Fui envenenado por um tomate que eu colhera ao voltar da escola. Seis meses antes, alguém dera veneno para nossas galinhas. No mês seguinte, o leitão que minha mãe criava comera um nabo envenenado e morrera. Por fim, eu comera o tomate envenenado largado numa pedra na beira do caminho que eu tinha que percorrer ao voltar da escola. Mal o engoli, tive a impressão de que me rasgavam as entranhas e desabei depois de alguns passos. Meu pai acorreu e me carregou às pressas para casa. Morri cuspindo uma espuma branca assim que ele me colocou na cama.

Eu estava morto, mas não morrera da "febre", isto é, de Aids.

Minha morte resultou da gigantesca coleta de sangue à qual meu pai se dedicara dez anos antes. Eu morrera porque ele se tornara o grande administrador do sangue para a Aldeia dos Ding, a Aldeia dos Salgueiros, a Aldeia das Águas Amarelas, a Aldeia do Segundo Li e outras aldeias da região. Ele era o rei do sangue.

No dia da minha morte, ele não derramou uma lágrima. Primeiro, quedou-se por um instante sentado ao meu lado com meu tio. Em seguida, os dois homens se levantaram e, equipados com uma pá afiada e um machado reluzente, foram se plantar no cruzamento de duas ruas, onde proferiram, com toda a potência de seus pulmões, uma torrente de invectivas destinadas à aldeia.

Meu tio berrou:

- Bando de canalhas, vocês só são bons para envenenarem à socapa, apareçam se tiverem colhões para que eu, Ding Liang, possa lhes arrancar a pele.

Meu pai, agitando sua pá, emendou:

- Vocês todos têm inveja de ver que eu, Ding Hui, sou rico sem ser doente! Tenho certeza! Estão com inveja! Pois bem, eu, Ding Hui, amaldiçoo seus ancestrais até a oitava geração.

Vocês envenenaram minhas galinhas, meu leitão e tiveram a suprema audácia de envenenar meu filho!

Continuaram assim até a noite.

Ninguém se atreveu a aparecer.

Finalmente, me sepultaram.

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